segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Há 28 anos um povo lutou contra os eucaliptos. E a terra nunca mais ardeu



















Em 1989 houve uma guerra no vale do Lila, em Valpaços. Centenas de pessoas juntaram-se para destruir 200 hectares de eucaliptal, com medo que as árvores lhes roubassem a água e trouxessem o fogo. A polícia carregou sobre a população, mas o povo não se demoveu.

«Foi o nosso 25 de Abril», diz Maria João Sousa, que tinha 15 anos quando a revolução chegou à sua terra. No dia 31 de março de 1989, a rebate do sino, 800 pessoas juntaram-se na Veiga do Lila, uma pequena aldeia de Valpaços, e protagonizaram um dos maiores protestos ambientais que alguma vez aconteceram em Portugal.

A ação fora concertada entre sete ou oito povoações de um escondidíssimo vale transmontano, e depois juntaram-se ecologistas do Porto e de Bragança à causa. Numa tarde de domingo, largaram todos para destruir os 200 hectares de eucalipto que uma empresa de celulose andava a plantar na quinta do Ermeiro, a maior propiedade agrícola da região.

À sua espera tinham a GNR, duas centenas de agentes. Formavam uma primeira barreira com o objetivo de impedir o povo de arrancar os pés das árvores, mas eram poucos para uma revolta tão grande.

Maria João, que nesse dia usava uma camisola vermelha impressa com a figura do Rato Mickey, nem deu pelo polícia que lhe agarrou no braço. «Ide para casa ver os desenhos animados», atirou-lhe, mas a rapariga restaurou a liberdade de movimentos com um safanão: «Estava tão convicta que não sentia medo nenhum. Naquele dia ninguém sentia medo nenhum. Eles atiravam tiros para o ar e parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar.»

A tensão subiria de tom ao longo da tarde. «Houve ali uma altura em que pensei que as coisas podiam correr para o torto», diz agora António Morais, o cabecilha dos protestos. Havia agentes de Trás os Montes inteiros, da Régua e de Chaves, de Vila Real e Mirandela.

Mas também lá estava a imprensa, e ainda hoje o homem acredita que foi por isso que a violência não escalou mais. Algumas cargas, pedrada de um lado, cacetadas do outro, mas nada que conseguisse calar um coro de homens e mulheres, canalha e velharia: «Oliveiras sim, eucaliptos não».

«Não queríamos arder aqui todos»

A guerra tinha começado a ser preparada um par de meses antes, quando António Morais, proprietário de vários hectares de olival no Lila, percebeu que uma empresa subsidiária da Soporcel se preparava para substituir 200 hectares de oliveiras por eucaliptal para a indústria do papel. «Tinham recebido fundos perdidos do Estado para reflorestar o vale sem sequer consultarem a população», revolta-se ainda, 28 anos depois.

«Nessa altura o ministério da agricultura defendia com unhas e dentes a plantação de eucalipto.» Álvaro Barreto, titular da pasta, fora anos antes presidente do conselho de administração da Soporcel e tornaria ao cargo em 1990, pouco depois das gentes de Valpaços lhe fazerem frente.

«A tese dominante dos governos de Cavaco Silva era que urgia substituir o minifúndio e a agricultura de subsistência por monoculturas mais rentáveis, era preciso rentabilizar a floresta em grande escala», diz António Morais. O eucalipto adivinhava-se uma solução fácil.

Crescia rápido e tinha boas margens de lucro. Portugal, aliás, ganharia em poucos anos um papel de destaque na indústria de celulose e os pequenos proprietários poderiam resolver muitos problemas de insolvência abastecendo as grandes empresas com uma floresta renovada. A teoria acabaria por vingar em todo o país, sobretudo no interior centro e norte. Mas não em Valpaços.

«Comecei a ler coisas e percebi que o eucalipto nos traria grandes problemas», continua António Morais. «Por um lado, numa região onde a água é tudo menos abundante, teríamos grandes problemas de viabilidade das outras culturas. Nomeadamente o olival, que sempre foi a riqueza deste povo. E depois havia os incêndios, que eram o diabo. São árvores altamente combustíveis e que atingem uma altura muito grande.»

Na terra quente transmontana o ano são oito meses de inverno e quatro de inferno. O fogo, tinha ele a certeza, chegaria com aquele arvoredo.

Uns meses antes da guerra, começou a conversar sobre o seu medo com algumas das mais relevantes personalidades do vale. Grandes proprietários, políticos da terra, as famílias mais reconhecidas. «Lentamente começou a formar-se um consenso de que o lucro fácil do eucalipto seria a médio prazo a nossa desgraça. Não queríamos deixar secar a nossa terra. E não queríamos arder aqui todos. Tínhamos de destruir aquele eucaliptal, custasse o que custasse.»

Anatomia da conspiração

O núcleo duro estava formado, era constituído por dezena e meia de agricultores capazes de mobilizar o resto do povo. «Aos domingos, íamos às aldeias e no fim da missa explicávamos às pessoas o que podia acontecer à nossa terra», lembra Natália Esteves, descendente de uma família de grandes produtores de azeite feita de repente líder de protesto ecológico. «E também íamos de casa em casa, esclarecer quem não tinha estado nas assembleias.»

Ao início houve renitência, a madeira valeria sempre mais do que a azeitona, e a castanha ainda não rendia o que rende hoje. «Mas tentámos sempre centrar a conversa no que aconteceria daí a uns anos, dizer que os eucaliptos secariam os solos e o povo ficaria refém de uma única cultura, que se alguma coisa corresse mal não teriam mais nada.»

O que mais assustava aquela gente, no entanto, era o fogo. «Onde há eucalipto, tudo arde. E então o povo já não chamava a árvore pelo nome, mas por fósforos.» A primeira batalha estava ganha: tinham o apoio da população.

João Sousa era nessa altura presidente da junta da Veiga do Lila. «Oficialmente não podia dizer que era contra os eucaliptos, nem ir contra a polícia. Mas, quando falava com as pessoas, dizia-lhes o que haviam de fazer», conta agora com uma gargalhada e sem ponta de medo.

«Então se tínhamos o melhor azeite do país íamos dar cabo dele para enriquecer uns ricalhaços de fora?» Tem 86 anos e uma destreza de 30, hoje estuga o passo para mostrar a zona que podia ter sido caixa de fósforos. «Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30 anos que não arde. Se o povo não se tem unido hoje estávamos a viver a mesma desgraça que vimos por esse país fora.»

Essa é aliás a conversa mais recorrente por estes dias no vale do Lila. A tragédia florestal portuguesa dá a este povo a impressão que eles sim, tinham razão há muitos anos, quando o governo e as autoridades lhes diziam o contrário.

«Podem achar que somos gente do campo, sem educação nem conhecimento, mas nós cá soubemos defender a nossa terra», diz o velhote. «Temos chorado muito por esta gente que perdeu vidas e animais e casas. E há uma coisa que o meu povo sabe: se temos deixado ficar os eucaliptos, também hoje choraríamos pelos nossos.»

A guerra

Há uns dias que os combates tinham começado. Ataques furtivos do povo, desorganizadamente, para arrancar pés de eucalipto nos limites do Ermeiro. Duas semanas antes da guerra, no Domingo de Ramos, as coisas aqueceram.

«Juntámos duas centenas de pessoas aqui destas aldeias e os donos da empresa chamaram a GNR», lembra António Morais. «Quando eles chegaram já tínhamos dado cabo de uns bons 50 hectares de eucaliptal.» Nesse dia não houve confrontos, porque o povo fugiu. Mas anunciaram a alto e bom som que voltariam depois da Páscoa.

Esse ataque tinha feito notícia no Jornal de Notícias e trazido uma mão-cheia de jornalistas à terra, nomeadamente Miguel Sousa Tavares, da RTP. «Percebi que as coisas estavam a tornar-se muito grandes e foi então que contactei a Quercus. Precisávamos de ajuda.»

Do outro lado da linha atendeu Serafim Riem, que dirigia o núcleo do Porto da organização ambientalista. O ecologista partiu imediatamente para o terreno. Nesses dias ouviriam do parlamento em Lisboa várias palavras de solidariedade. Sobretudo do PCP, d’Os Verdes e de um jovem deputado socialista chamado José Sócrates.

Agora não valia a pena esconder mais nada. A 31 de março de 1989, domingo depois da Páscoa, o povo juntar-se-ia todo na Veiga do Lila para dar cabo do eucaliptal que restasse. A aldeia enchera-se de jornalistas, havia até um helicóptero a cobrir os acontecimentos do ar.

A direção nacional da Quercus demarcar-se-ia da organização dos protestos através de um comunicado, mas os núcleos do Porto e Bragança encheriam cada um o seu autocarro de ambientalistas carregados de cartazes. Às duas da tarde o sino começou a tocar a rebate. Oito centenas de vozes entoavam «oliveiras sim, eucaliptos não» e largaram por um caminho de terra batida para a quinta do Ermeiro.

Não era preciso usar enchadas nem sacholas, os eucaliptos tinham sido plantados há pouco tempo e arrancavam-se com as mãos. A polícia tentava fazer uma linha de defesa, mas duas centenas de agentes não chegavam para aquela gente toda.

Numa hora, foram arrancados 180 hectares de pequenas árvores. «Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas bastonadas das boas», recorda Natália Esteves. Os que eram de perto diziam-lhes assim: «Tendes razão, por isso vamos fingir que não vemos.» Viravam as costas e o povo ia subindo o terreno.

Num instante, o casario da quinta tornava-se no último reduto da investida. Uma dezena de guardas saíram a cavalo, era demonstração de força mas não surtiu resultado. A Soporcel tinha construído socalcos para plantar os eucaliptos e, agora, os animais não conseguiam descê-los.

«O povo ia atirando pedras aos guardas, houve um que acertou no cavalo e mandou-o abaixo», diz João Morais. Foi nesse momento que entrou em campo o corpo de intervenção, disposto a levar toda a gente pela frente. «Aí as coisas podiam ter descambado definitivamente.»

Todos por um

A guarda especializada avançava agora colina abaixo com escudos e capacetes. José Oliveira, um agricultor da pequena aldeia de Émeres, tentou escapar pela lateral, mas foi logo caçado pela guarda. No bolso trazia um revólver e foi isso que o tramou. «Levaram-no logo detido para dentro do jipe por posse de arma ilegal», conta agora a sua viúva, Ester.

Aquela detenção marcaria o início do fim da guerra. «As pessoas tinham recuado por causa do corpo de intervenção, mas quando se aperceberam que um dos nossos estava preso começaram a gritar que não arredariam pé enquanto ele não fosse solto», diz João Morais. Ester anui, «foi o vale inteiro que salvou o meu homem.» Agora já não havia pedras, havia gritos. Que libertassem o tio Zé e rápido.

Serafim Reim, o homem da Quercus, é que foi lá negociar a libertação com os guardas. Sobravam menos de 20 hectares de eucalipto, o povo deixá-los-ia em paz se soltassem o velhote. Uma hora depois, houve consenso. Identificaram José Oliveira, caçaram-lhe a arma e mais tarde levaram-no a tribunal, mas naquele dia saiu pelo seu pé para os braços da mulher, e daí para casa.

António Morais, Natália Esteves, João Sousa e mais uma dezena de organizadores do protesto também seriam chamados à barra da justiça, um ano depois enfrentaram acusação de invasão de propriedade privada e foram condenados com pena suspensa.

«Ainda vieram uns engenheiros da Soporcel dizer que retirariam a queixa se nos comprometêssemos a não destruir uma nova plantação de eucalipto. Disse-lhes que nem pensar, aqui nunca teríamos árvores dessas no nosso vale.»

Nas noites seguintes arrancou-se à socapa quase tudo o que faltava, ficaram apenas meia dúzia de hectares a rodear o casario da quinta, mais passível de vigia. A Soporcel acabaria por desistir e vender a propriedade e a família que a comprou, quando ousou confessar a Natália Esteves que pensavam plantar eucaliptos, foram logo avisados: «Se os botais nós os arrancamos.»

Hoje, o Ermeiro é terra de nogueiras e amendoeiras, oliveiras e pinho. Nunca ardeu. Serafim Riem, o ambientalista da Quercus, diz que até hoje a guerra do povo de Valpaços é um marco, a maior ligação jamais vista no país entre o mundo rural e o ativismo ecológico.

«A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir drasticamente o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone, que não só tem melhor imunidade ao fogo como gera uma riqueza mais diversificada para as populações.»

Naquele 31 de março de 1989, o povo uniu-se e, diz agora, salvou-se. «Nós é que tínhamos razão», repetem uma e outra vez, repetem todos. Às seis da tarde, depois de José Oliveira ser libertado, um vale inteiro voltou pelo mesmo caminho e juntou-se no principal largo de Veiga do Lila. Mataram-se dois borregos e um leitão, abriram-se presuntos e deitaram-se alheiras à brasa, houve até quem trouxesse uma pipa de vinho. A festa durou noite dentro e foi maior do que qualquer romaria de Santa Bárbara.

À volta da fogueira acabariam por juntar-se também os guardas que horas antes defendiam o Ermeiro. E ali ficaram a comer e beber, vencedores e vencidos, que em Trás-os-Montes nunca se nega hospitalidade. Maria João Sousa nunca tinha visto uma coisa daquelas, nem nunca voltaria a vê-la na sua terra. Foi o 25 de Abril da sua gente. «Há lá coisa mais bonita do que uma revolução.»




Texto de Ricardo J. Rodrigues

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Ficar para enfrentar as chamas








































Alcinda Santos acordou com o monstro. Pouco passava da meia-noite e o vento assobiava bravo, ao fundo parecia-lhe ouvir o crepitar das árvores mas, que raio, o bosque estava tão longe. Levantou-se, foi à porta e quando a abriu lançou um grito: «Ai que morremos aqui todos, ai os meus ricos filhos.»

As labaredas tinham galgado o pinhal e engoliam livres as casas, a sua estava já tomada num canto. O marido e o filho despertaram com o pânico, tudo para a rua de pijama, descalço, tentar contornar o fogo enquanto ele deixasse.

Alcinda e o filho, Nuno, correram a bater às portas dos vizinhos, o monstro tinha chegado de mansinho e ninguém dera por ele.

Na aldeia de Ânsara, em pleno vale da Ventosa, vivem 19 pessoas, quase todos fugiram de carro. Ela teve um minuto para decidir se ia ou ficava. Ficaram oito braços para tanto fogo. Ela, o filho, dois vizinhos. Chamaram uma outra vez os bombeiros, ninguém podia acudir-lhes.

As condutas de água tinham rebentado, com os poços sedentos pela seca não havia nada para combater o incêndio. Um quilómetro abaixo do povo havia uma cisterna, então começaram a encher baldes e galgar a colina para tentar pelo menos salvar a sua casa. Quando amanheceu, ainda andavam naquilo, a carregar baldes e enxotar as chamas.

Foi só quando parou que a mulher de 60 anos percebeu tudo o que perdera. Chorou pelo sofrimento dos seus bichos, quase todos carbonizados no curral. E pela ingratidão do verão mais trabalhoso de que tinha memória, a concluir jornas ao calor, e que afinal não lhe valera de nada. Mas aquele minuto em que decidira ficar tinha-lhe salvo a casa. E, no fim de tudo, estava viva. «Foi Deus.»

O mesmo não se pode dizer da aldeia de Vila Nova, uns quilómetros abaixo, onde quatro pessoas perderam a vida para o mesmo incêndio. Ainda há um desaparecido. Os vizinhos bem tentaram salvá-los, mas o monstro era demasiado forte e enfrentá-lo ali era sentença de morte.

E fugiram, que mais podiam fazer? «Acha que abandonar a minha casa é fácil? É a minha vida toda naquelas paredes», diz Emília Marques, 73. «O fogo obriga-nos a tomar uma decisão muito rápida: ou fugimos e tentamos salvar a vida, ou arriscamos a morte para salvar o que demorámos uma vida inteira a construir.» Como num jogo de poker, arrisca-se – e às vezes perde-se.

Horas antes do anúncio das primeiras mortes, o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, pedia proatividade às comunidades rurais: «Não podemos ficar todos à espera que apareçam os bombeiros e os aviões para resolver o problema. Temos que proteger-nos.»

Rui Ladeira, presidente da câmara de Vouzela, gostaria que Jorge Gomes viesse dizer isso às gentes do vale da Ventosa: «A população do interior é envelhecida, não tem grandes condições de mobilidade nem formação para o combate aos incêndios.»

Muitas vezes, acrescenta, o fogo é tão rápido que nem sequer tem a decisão de ficar ou partir. «O que os bombeiros fizeram ontem à noite foi tentar garantir que as populações de Vouzela tivessem pelo menos uma opção.»

No terreno não estiveram mais de 50 homens para combater um fogo com três frentes e progressão rápida. «Às tantas percebemos que tínhamos dois vales com várias aldeias a ficar completamente rodeadas e tivemos de concentrar esforços ali para que pelo menos fosse possível sair», diz Joaquim Tavares, comandante dos bombeiros de Vouzela.

À Ventosa os carros já não podiam chegar, ficou entregue à sua sorte. Arderam casas em todas as aldeias, perderam-se vidas e das estradas a única paisagem que se alcança agora é um fim de mundo negro e fumegante.

Às vezes a decisão tem tempo para ser tomada. É isso que está a acontecer na aldeia de Paços de Ariz, também em Vouzela. Às duas da manhã apareceu a GNR, o incêndio estava bravo e não tardaria a chegar à povoação. Foi dada ordem de evacuação, quem ficasse fá-lo-ia por sua conta e risco.

«Metemos os mais velhos e os que não se podem mexer nos carros, toda a gente tem família aqui à volta», diz António Carvalho, 68 anos, nascido e criado na terra. Ele, a mulher e o sobrinho ficaram, mais uma mão cheia de vizinhos. Agora estão ali, a ver o mostro beijar-lhes os calcanhares.

Durante a noite, começaram a atar a urze em ramadas largas, caso falhe a água ainda podem dar vassourada aos pequenos focos. Ligaram mangueiras a todas as torneiras, disponíveis e viraram-nas para o ribeiro seco, de onde sabem que chegarão as chamas.

Os telhados molhados, panos encharcados na cabeça e máscaras a tapar narizes e bocas. «Se correr para o torto resta-nos fugir para os carros.» Estão todos apontados à estrada, para que ninguém precise de perder tempo em manobras.

«Quem fica para lutar e ganha nunca ganha verdadeiramente», diz Mabilde Santos, que não consegue parar de chorar. A sua casa é uma das mais isoladas que há na Ventosa – e esta noite o marido, sapador florestal, foi-lhe ensinando as táticas da guerra. «Dá-lhe mangueirada aqui, agora varre dali».

A habitação resistiu, apesar de ter ardido todo o piso térreo onde armazenavam lenha e das persianas das janelas terem derretido com o calor. Os animais foram-se, «e o carro só se salvou porque fui estacioná-lo no largo onde está a estátua de Fátima e Nossa Senhora quis protegê-la».

Mudaram-se para Vouzela há dois anos, depois de se conhecerem numa plantação de mirtilos em Bragança e se apaixonarem à primeira vista. São jovens, fartos da cidade, aquela casa no meio do pinhal era todo um projeto de vida.


«Lutámos tanto por isto e ontem à noite, quando o fogo chegou à escada, eu só pensava se valia a pena salvá-la.» Que paraíso sobra quando o sonho em volta ardeu? Ficar para lutar contra o monstro, mesmo que se ganhe a batalha, não significa vitória na guerra.

Texto de Ricardo J. Rodrigues